Érico Bomfim: os musicistas (do meio acadêmico musical) deviam compreender o funk musicalmente

Eu não sou um entusiasta do funk. Não acho que se deva defender ou deixar de criticar um gênero apenas por sua origem popular. Também não acho que se deva confundir obscenidade com liberdade sexual – elementos que tangenciam a “cultura funk”.

Dito isso, me parece que o funk deve ser estudado enquanto uma realidade musical incontestável. Não é necessário cultuar o funk como o suprassumo da cultura popular para estudá-lo. Basta reconhecer sua existência. E digo estudá-lo musicalmente, não antropologica ou sociologicamente apenas.

Eu acabei de assistir a um vídeo sobre “politonalismo” no “hit” Deu Onda e achei bem interessante. De fato, o acompanhamento é em Sol# menor enquanto a maior parte da melodia é em Sol# maior (portanto, não chega a ser precisamente politonalismo, mas sim polimodalismo, mas isso é o de menos).

Fato é que o acompanhamento está em constante choque com a melodia e, no entanto, ninguém achou a música estranha ou “desafinada” por isso. Isso por si só é interessante, já que definitivamente não é algo corriqueiro ou banal.

Se o fenômeno fosse objeto de pesquisa, seria o caso também de levantar a hipótese de esse artifício polimodal ser, em parte, decorrente do aprimoramento tecnológico. Afinal, seria no mínimo inconveniente manter a afinação com a melodia brigando com o acompanhamento dessa forma. Porém, gravando com os computadores de hoje em dia é mole.

O mesmo erro que a musicologia cometeu com uma infinidade de compositores eu acho que corremos o mesmo risco de cometer contra o funk: descartá-lo simplesmente como ruim, inferior ou errado sem compreendê-lo.

É aquela velha história: as relações de terças de Schubert eram “mal feitas” até que veio a teoria neo-riemanianna para nos ajudar a entendê-las, Stravinsky era “ruim” porque, para Schenker, não tinha uma Ursatz e assim por diante. Na verdade, a graça das terças de Schubert (e de vários compositores a partir do séc. XIX) era exatamente não ser compreensível por modelos teóricos (e ouvidos) tradicionais, assim como a graça da peça de Stravinsky era precisamente, de algum modo, não ter uma Ursatz.

É claro que eu não estou comparando Schubert e Stravinsky ao MC G15 (é isso?). Estou apenas advertindo para a necessidade de compreender uma realidade musical que está diante de nós. Afinal, é bem possível que esse mesmo “hit” não fizesse a metade do sucesso que fez sem seu polimodalismo. Esse polimodalismo inusitado faz todo sentido para quem gravou e para a multidão que ouve. Só não faz para a Academia.

Érico Bomfim

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